quarta-feira, agosto 18, 2004

Post de Inauguração

Como meu primeiro post neste Concílio de amigos, queria colocar o que escrevi sobre meu melhor amigo, o monge beneditino que me viu crescer e que foi meu confessor por quase 20 anos, desde minha primeira comunhão até sua morte em 1993. O texto foi originalmente publicado no Asa de Borboleta, em 15 de novembro de 2003. É um texto para homenagear o homem que me guiou pela mão até o Cristo, que fala do amor, do orgulho e da saudade que sinto quando penso nele.

Homem de Preto
Ela chegou sozinha. Entrou em silêncio. Sentou-se no canto mais escuro da grande igreja barroca. As lágrimas, teimosas e fartas, escorriam sem parar e sem que ela fizesse qualquer movimento para estancá-las. Um soluço esporádico incomodava os espantados vizinhos de banco. A maior parte do tempo ela mantinha os olhos baixos, as lágrimas regando e enchendo lentamente o côncavo de suas mãos pousadas sobre suas coxas. Ouvia sem escutar o movimento e a missa solene que prosseguia. Os momentos em que tinha de ficar em pé eram os mais difíceis, pois então não havia como não ver o vulto de preto estendido descalço no chão, em frente ao altar.

Aquele vulto de negro tinha sido parte de sua vida desde o berço, quando ele visitara a casa de sua avó e abençoara o bebê que ela fora. Maiorzinha, levada pela mão da tia, ia visitar aquele grande homem sorridente, sempre de preto. Ela menina ia ficando mais e mais intimidada quando seus olhos iniciavam a viagem do chão até seu rosto. Desde os sapatos pretos reluzentes, passando pelo hábito preto e grosso – com aquele aventalzinho engraçado na frente onde ele escondia as mãos – até chegar ao rosto. Aí, todo sentimento de intimidação sumia, porque a criança pequena que ela era encontrava o brilho alegre do olhar daquele homem, que parecia dizer “sou criança também, mas não conte a eles!”. Ela não conseguia evitar de abrir um largo sorriso. Ao longo dos anos foi sempre assim, ela aprendia rapidamente a interpretar os diferentes brilhos do olhar daquele homem de preto.
Depois que ficou maior, e fez sua primeira comunhão em Brasília, esperava aflita as oportunidades de pegar um avião para o Rio de Janeiro, onde seu amigo a esperava. Eles chamavam aquelas visitas de “confissão”, mas ela via aquilo apenas como matar as saudades de seu amigo – muitas vezes, durante diversas fases de sua vida, o único amigo verdadeiro. No meio das conversas, períodos longos de silêncio, sentados num canto do jardim, escutando o distante rugido do centro da cidade e o silêncio reinante naquele recanto. Uma vez, um sabiá pousou na frente deles e os três ficaram a se fitar, imóveis, até que o pássaro cansou da brincadeira e levou seu peito vermelho para longe dali, mas não sem antes deixar uma estranha alegria no peito da menina.
Na adolescência, a natural atitude de desafio da idade se desmanchava por completo na presença do homem de preto. O sorriso compreensivo, a voz pausada e modulada, aquele olhar penetrante onde sempre pairava uma alegria, aquilo tudo a acalmava. Ele, ao contrário dos pais, escutava atento e com a maior seriedade o que ela lhe dizia. Concordando ou não, nunca fazia com que ela se sentisse tola ou incapaz.
Quando a mãe da jovem adoeceu, seu homem de preto redobrou suas atenções, ligando toda a semana e insistindo que ela se juntasse ao grupo jovem que ele orientava. Ela foi, apenas para estar com seu amigo, nada tinha em comum com a maioria daqueles adolescentes que cantavam tão alto e batucavam seus violões na missa. Ela tinha crescido escutando a voz de seu amigo no canto gregoriano, sob a sombra cheia de contemplação daquele Mosteiro. Morre-lhe a mãe, e a saúde de seu já idoso amigo começa a fraquejar. Pouco a pouco, ele enfraquece diante dos seus olhos, mas tamanha era a força daquele espírito que ela não percebeu nada além do olhar cada dia mais arguto em desvendar seus pensamentos e humores, e a palavra cada dia mais caridosa.

Agora ela estava ali, e seu amigo, seu homem de preto, repousava no chão de pedra da igreja onde eles sempre se encontravam. As mãos não mais escondidas no bolso do hábito, mas recolhidas dentro das mangas. O capuz que ela sempre vira pender sobre os ombros, pela primeira vez cobria sua cabeça. Os pés, ela os via pela primeira vez sem seus sapatos pretos sempre bem engraxados. Ela nunca o vira tão quieto e tranquilo, parecia dormitar, mas ela sabia que aquele era o sono eterno, merecido depois de uma longa vida de estudo, trabalho e problemas de saúde. Seus irmãos de hábito se arrumam em torno dele, e ela sente a dor aguda da separação iminente. Sendo mulher, jamais poderá visitá-lo no claustro onde ele dormirá. Não sendo parente, não poderá jamais convencer àquelas pessoas espantadas de vê-la chorar tanto a morte de um padre que aquele monge era seu pai. Não sendo da ordem beneditina, não poderia jamais compartilhar com ele esta irmandade especial advinda de ser filha de São Bento. Ele ia ser radical e definitivamente separado dela.
Eles o levaram em procissão e ela seguia, tornada apática pelo tamanho do seu sofrimento. Seguia mais ou menos no meio da multidão que acorrera ao velório e ao enterro, multidão que era para ela nova fonte de dor, pois nem mesmo a exclusividade de saber que ele era especial ela tinha. Colocado suavemente dentro de sua última morada, a fila dos amigos que iam prestar os últimos respeitos se forma, e cada um recebe uma pedrinha, que deposita sobre o caixão agora fechado. Ela quase guardou aquela pedra na bolsa, mas afinal queria que ele tivesse contato, por ínfimo que fosse, com algo que pertencera a ela, nem que fosse por alguns instantes. Jogou a sua pedrinha também.
Ao deixar o claustro, grossas lágrimas de chuva começaram a cair do céu de março, pois aquele dia o Rio de Janeiro chorou copiosamente a morte de um filho ilustre. Vagarosamente ela desce a ladeira no meio da chuva, indiferente, mas pára um instante para olhar para trás. Aquela imensa construção de pedra sempre o abrigara. Agora, misteriosamente, toda a construção sorria o seu sorriso, e todas as vidraças brilhavam com a luz do seu olhar. Pois ele virara o Mosteiro, e o Mosteiro virara João.

4 Comentários:

Blogger Albino disse...

Se fosse apenas um conto sem nunca ter tocado a realidade já seria, mesmo assim, digno de minha lágrima. Obrigado por compartilhar seu mundo conosco Sue.

18 de agosto de 2004 às 21:24  
Blogger Albino disse...

Agora um pouquinho do seu mundo faz parte do meu mundo. ;)

18 de agosto de 2004 às 21:28  
Blogger Albino disse...

Agora um pouquinho do seu mundo faz parte do meu mundo. ;)

18 de agosto de 2004 às 21:28  
Blogger Sue disse...

Albino,

Ora, meu irmão, o maior pedaço do meu mundo já fazia parte do seu mundo antes de nos conhecermos... pois já eramos filhos desta Mãe Maria Santísisma, servos do mesmo Mestre. Você agora só está começando a conhecer os detalhes... ;) Eu ainda choro de saudades de D. João, de vez em quando, sabe? Ele verdadeiramente foi meu pai.

Alberto,

Ah, seria maravilhoso ter estudado no São Bento, que colégio especial... D. Tadeu é um bom amigo, outro dia mesmo fui lá me confessar com ele, acabamos tagarelando a manhã inteira, e almocei com ele no refeitório do colégio. Foi uma manhã cheia de luz! :)

Beijos aos dois

19 de agosto de 2004 às 01:11  

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